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  • G1 Pernambuco

Em um ano, quase metade das linhas de ônibus no Grande Recife tem frota reduzida

Em um ano, quase metade das linhas de ônibus no Grande Recife tem frota reduzida; corte afeta sistema já precarizado na capital mais ameaçada pela crise climática


Dados obtidos pelo g1 por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, entre 2022 e 2023, 183 veículos foram retirados das ruas.


Estresse, aperto e sufoco. Essas três palavras resumem a rotina das mais de 760 mil pessoas que precisam usar o transporte público, dia após dia, para se locomoverem no Grande Recife. Se esta é uma realidade conhecida há décadas na capital pernambucana, ela tende a piorar no futuro.


Num cenário de aquecimento global, em que fenômenos como temporais e ondas de calor se tornam mais frequentes e intensos, a mobilidade na metrópole brasileira mais ameaçada pelas mudanças climáticas enfrenta ainda a falta de investimentos, com menos ônibus nas ruas — um quadro que estimula o uso de veículos particulares e afeta, em especial, a população de baixa renda.


Com o transporte público precarizado, as cidades parecem priorizar cada vez mais um modelo de locomoção poluente: a utilização de transportes individuais, com carros, aumentando não somente a emissão de gases do efeito estufa, mas também o número de veículos nas ruas e os engarrafamentos (entenda mais abaixo).


Dados do Grande Recife Consórcio de Transporte, obtidos pelo g1 por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que, no último ano, 153 linhas de ônibus que transitam na Região Metropolitana sofreram uma redução na frota de veículos.


O número equivale a 44,2% dos 346 itinerários do sistema viário (sem contar as dos "bacuraus", que andam de madrugada e já utilizam parte dos coletivos empregados durante o dia).


Entre 1º de setembro de 2022 e o dia 5 do mesmo mês deste ano, o quantitativo de veículos que saíram das garagens para transportar passageiros entre bairros e comunidades caiu de 2.301 para 2.118.


A diferença, de 183 ônibus, representa um encolhimento de 7,9% na oferta do serviço. Juntos, esses coletivos têm capacidade para comportar até cerca de 14 mil pessoas sentadas e em pé.


A contagem, realizada a cada mês pelo órgão gestor do sistema de transporte público, vinculado à Secretaria Estadual de Mobilidade e Infraestrutura (Semobi), indica que a frota atual ainda está muito abaixo da que era empregada antes da pandemia


Segundo as estatísticas do Grande Recife Consórcio, em 9 de março de 2020 — três dias antes dos primeiros casos confirmados de Covid-19 no Recife — 2.415 ônibus percorreram a Região Metropolitana, 12,2% a mais do que o número disponível em 2023.


A redução da frota foi verificada em todas as dez empresas que operam o serviço. Por outro lado, apenas 13 itinerários de cinco operadoras tiveram algum reforço.


Proporcionalmente, as concessionárias que fizeram os maiores cortes foram o Consórcio Recife (formado pelas companhias Transcol e Pedrosa), Vera Cruz, Viação Mirim e Metropolitana.


Entre as centenas de linhas reduzidas, há ramais bastante conhecidos, que cruzam cidades e grandes avenidas, como, por exemplo, a 050 - PE-15/Boa Viagem, operada pela Borborema. O percurso, que vai de Olinda à Zona Sul do Recife, tinha 36 ônibus e, agora, conta com 32, perdendo quatro veículos.


Outras linhas "tradicionais", que também foram afetadas, são:


  • 516 - Casa Amarela (Nova Torre), operada pelo Consórcio Recife de Transporte, que perdeu três ônibus (de nove para seis);

  • 207 - TI Barro/TI Macaxeira (BR-101), da Metropolitana, que também teve três veículos retirados (de 20 para 17);

  • 1076 - TI Pelópidas (PCR) (Parador), do Consórcio Conorte, cuja frota sofreu uma redução de 22 para 19 coletivos;

  • 914 - TI PE-15/TI Afogados, compartilhada pelas empresas Caxangá e Globo (cada uma delas retirou um ônibus do ramal, fazendo a frota diminuir de 38 para 36 veículos).


Mas o maior impacto recai sobre itinerários menos "famosos", que se restringem a localidades específicas. Segundo os dados oficiais, seis linhas que circulavam com dois coletivos passaram a rodar com apenas um ônibus, numa redução de 50% da frota:


  • 018 - Brasília Teimosa, da Borborema;

  • 065 - Piedade/TI Prazeres, da Borborema;

  • 075 - Candeias/TI Prazeres, da Borborema;

  • 219 - TI TIP/Jaboatão (Sancho), da Borborema;

  • 348 - TI TIP/Curado V, da Borborema;

  • 229 - Marcos Freire (Opcional), da Vera Cruz.



Cadê os ônibus?

Com menos ônibus em circulação, a quantidade de viagens realizadas também caiu, na mesma proporção de 8%, passando de 20.764 para 19.138 passeios por dia.


Ao g1, o Grande Recife Consórcio de Transporte informou que a diminuição na oferta do serviço ocorreu devido a uma queda de demanda. Segundo o órgão, o sistema perdeu quase 250 mil passageiros diários desde o começo da pandemia.


Também procurado, o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros de Pernambuco (Urbana-PE) afirmou que apenas segue as orientações do Grande Recife Consórcio e disse que os veículos que deixaram de ser usados continuam à disposição como parte da frota reserva das companhias


Mas a superlotação não deixa de ser uma constante no sistema, sobretudo nos horários de pico. É o que conta a auxiliar administrativa Andréa Araújo. Ela mora em Igarassu e todo dia pega o 1963 - TI PE-15/Igarassu, da empresa Conorte, para ir ao trabalho, que tem escritórios no bairro de Pau Amarelo, em Paulista, e na Madalena, na Zona Oeste do Recife (veja vídeo abaixo). A linha, que tinha 19 ônibus no ano passado, agora tem 18.

"[O número de ônibus] não suporta a quantidade de passageiros que existem. Não dá suporte. Tanto pela parte da manhã, às 4h da madrugada, quanto nesse horário [no fim da tarde]. E o trânsito não ajuda", diz a usuária, que costuma esperar até 20 minutos no terminal para entrar num coletivo.


A cozinheira Luciene Maria Pereira também sofre no transporte público. Por volta das 5h, ela sai de casa, também em Igarassu, e vai num TI PE-15/Igarassu até o terminal da PE-15, onde faz a integração para pegar a linha PE-15/Boa Viagem, que a leva ao restaurante onde trabalha, em Santo Amaro, no Centro do Recife. São os mesmos ônibus na volta.


"De manhã, é horrível pegar esse ônibus. A gente fica imprensado, não consegue nem botar o pé direito. Se botar, não consegue ficar no mesmo lugar. É cansativo. [...] Já chego muito cansada [no trabalho]", conta Luciene, que chega a esperar de 40 minutos a uma hora na primeira parada.

Processo de 'desestruturação'

Para o advogado Pedro Josephi, coordenador da Frente de Luta pelo Transporte Público, o Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP/RMR) vem sofrendo, há anos, "uma grave desestruturação".


De acordo com o ativista, o órgão que decide sobre a ampliação ou redução do serviço é o Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM), formado pelo governo do estado e por representantes das mais diversas instituições, incluindo as prefeituras do Recife e de Olinda, a Urbana-PE e entidades civis que representam os usuários.


No entanto, o colegiado, que deveria se reunir a cada dois meses, não é convocado desde o ano passado, segundo Josephi.

"O CSTM é o órgão competente para fiscalizar, apurar, aprovar ou rejeitar esse tipo de alteração que o governo do estado vem fazendo de forma unilateral. O consórcio Grande Recife não pode extinguir linhas nem diminuir a oferta do serviço. Os dados nos revelam que nós temos aí uma diminuição do serviço. E essa diminuição não foi atrelada à diminuição da tarifa", afirma o advogado.

Na visão do coordenador da Frente de Luta pelo Transporte, a gestão estadual não tem dialogado com a sociedade para apresentar as políticas que estão sendo planejadas para o setor.


"Você ter, no intervalo de um ano, a redução de quase 200 veículos em operação sem nenhum diálogo, sem conversa com a comunidade diretamente atingida, por mais que a linha não tenha sido extinta e tenha sido retirado um ou dois ônibus, impacta diretamente a vida daquela comunidade para poder chegar ao centro, à sua faculdade, ao seu trabalho ou ao seu momento de lazer", diz Josephi.


Precarização

Esse padrão de queda nas frotas de ônibus se repete em outros centros urbanos e se agravou depois da Covid-19, de acordo com a diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) e doutoranda em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Clarisse Linke.

"Esse cenário do transporte público, não só na Região Metropolitana do Recife, é o resultado de um colapso na última década e meia [...]. A pandemia escancarou uma crise que a gente estava vivendo, inclusive com uma perda constante de passageiros, migrando para o transporte individual – nos últimos anos, para o transporte por aplicativo. E essa retomada pós-pandemia tem sido muito falha em todo o país", explica a pesquisadora.


Segundo a especialista, a constatação desse colapso fez intensificar o debate sobre o financiamento do transporte coletivo no Brasil.


Entre as propostas discutidas no Congresso Nacional, está a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), que prevê uma maior participação da União e dos governos estaduais na garantia de recursos e na gestão do setor, hoje concentrada nos municípios.


"A gente não pode ficar sem o transporte público. Ele é fundamental, não só pelo seu papel social, mas pelo seu papel ambiental. É o nosso potencial de ter um modo mais eficiente [de deslocamento] com menos consumo de energia, eventualmente migrando para veículos limpos. É a nossa chance de rever esse modelo poluente de deslocamento", afirma Linke.


O "modelo poluente de deslocamento" citado pela pesquisadora tem por base a priorização dos veículos individuais nas cidades, onde a presença dos carros continua dominante nas ruas, inclusive com medidas que privilegiam o transporte particular, como o pacote fiscal que reduzirá o valor do IPVA a partir do ano que vem.


"A gente está tratando de um sistema de transporte que cada vez mais é emissor de gases de efeito estufa. Num veículo com uma alta capacidade, como o ônibus – onde a gente tem 30, 40, até 50 pessoas – a emissão de poluentes por passageiro é muito menor do que num carro, por exemplo. [...] Tem vários pesquisadores que falam: '80% das ruas são destinadas aos carros', sendo que os carros não carregam 80% da população; eles carregam 20%, 25%", diz a diretora executiva do ITDP.


Conforme lembra a pesquisadora, a parcela que mais sofre com as consequências do agravamento do efeito estufa na atmosfera são os mais pobres e, dentro desse segmento, a população preta e parda.

"A gente sabe que tem um aspecto de racismo ambiental importante. Os veículos emitem dois tipos de poluentes: os globais, que causam a questão do efeito estufa, e os locais, que afetam a qualidade do ar que a gente respira. E os grupos mais expostos, mais vulneráveis, são os da periferia. E, quando a gente pensa em número de mortos e feridos no trânsito, muitas vezes provocadas por veículos particulares nessa cidade congestionada e inóspita, também quem mais morre é a população negra, da periferia", analisa Clarisse Linke.


A 'ilusão' dos carros

Parte disso é reflexo de um tipo de sociedade que põe o carro no centro das prioridades no setor de transportes. Um imaginário disseminado ao longo de décadas por meio de propagandas exibindo automotores potentes que simbolizam a liberdade de ir e vir a todo lugar.


Para o historiador norte-americano Peter Norton, que veio ao Recife em outubro para lançar o livro "Autorama: uma história sobre carros 'inteligentes'", a ideia de que o uso de automóveis bem equipados com tecnologias "de ponta" dá mais autonomia às pessoas, consistindo numa boa solução para os deslocamentos dentro dos centros urbanos, é "ilusória".

"Já temos tudo o que é necessário [para uma mobilidade sustentável]. Só precisamos permitir que as pessoas vivam juntas, morando perto dos lugares aonde elas precisam ir todos os dias, e tenham a possibilidade de caminhar, andar de bicicleta, pegar um ônibus, trem ou metrô. Não necessitamos de incríveis 'varinhas mágicas' hollywoodianas, o futuro de 'Blade Runner', ou coisas assim", afirma o historiador.

Na avaliação do pesquisador, não existe mobilidade urbana sustentável sem diversificar as alternativas de formas de se deslocar oferecidas à população.


"Qualquer cidade que queira servir às pessoas, incluindo os motoristas e os donos de carros, se mantém melhor se proporcionar opções de deslocamento além de dirigir um automóvel, para que elas não tenham que comprar um carro [...]. Tenho um amigo que diz que humanos são pedestres por natureza. Por que contradizer essa 'ordem natural'? É como tentar reverter o fluxo de um rio", avalia Peter Norton.


O que dizem governo, Grande Recife Consórcio e empresas

O g1 procurou a Secretaria de Mobilidade e Infraestrutura de Pernambuco (Semobi), o Grande Recife Consórcio de Transporte e o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco, a Urbana.


Responsável pelo planejamento das políticas públicas na área da mobilidade urbana, a Semobi afirmou que a gestão do sistema de transporte coletivo é responsabilidade do Grande Recife Consórcio e não designou um porta-voz para dar entrevista sobre o assunto até a última atualização desta reportagem.


O Grande Recife Consórcio - empresa pública multifederativa, ligada ao governo do estado e aos municípios da Região Metropolitana - respondeu aos questionamentos do g1 apenas por meio de nota. O órgão informou que:


  • O serviço é dimensionado a partir da demanda de passageiros, "tanto para aumentar quanto para reduzir o tamanho da frota das linhas";

  • No período anterior à pandemia, eram transportados, em média, cerca de 1 milhão de passageiros por dia útil e, após a crise sanitária, esse número caiu para aproximadamente 760 mil;

  • Fiscaliza continuamente o serviço de transporte e segue todas as políticas públicas e diretrizes do Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM);

  • O mandato dos representantes da sociedade civil no CSTM acabou em junho de 2023 e, por esse motivo, há dificuldades para a realização de "reuniões deliberativas";

  • A eleição dos novos representantes da sociedade civil no CSTM depende da realização de uma Conferência Metropolitana de Transporte, e os estudos para que essa conferência seja convocada estão em andamento.


O g1 perguntou ao consórcio o que é a Conferência Metropolitana de Transporte e por que é necessário fazer estudos para convocá-la, mas não obteve retorno até a última atualização desta matéria.


A reportagem também questionou o órgão sobre a possibilidade de redução do preço das passagens de ônibus diante da diminuição da oferta do serviço.


O consórcio respondeu que os estudos de política tarifária são encaminhados ao CSTM e que o serviço opera atualmente com uma demanda inferior à registrada antes do período pandêmico. Isso, de acordo com o Grande Recife, "afeta diretamente o equilíbrio econômico do sistema".


Já o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco, a Urbana, afirmou que:


  • A definição sobre a quantidade e a frequência dos ônibus em circulação compete ao Grande Recife Consórcio de Transporte;

  • As empresas operadoras executam os serviços "estritamente em conformidade com as determinações do órgão gestor";

  • "Os veículos das linhas que sofreram redução de programação continuam à disposição como parte da frota reserva das empresas".


O g1 perguntou à Urbana quais foram os critérios utilizados pelas empresas para decidir quais linhas deveriam ser reduzidas, mas o sindicato não respondeu à questão.

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